Pontualmente, o alarme do relógio soou à uma da manhã, tal como eu o havia programado.
Desliguei-o, e pela milésima vez apurei os meus ouvidos, para perceber se a intensidade do vento tinha diminuído alguma coisa. O que é que eu faço? Tinha passado a noite em claro, alternando o calor do meu saco – cama com a necessidade de ter de me levantar para agarrar a estrutura da minha tenda, constantemente açoitada por furiosas rajadas de vento.
Estava a 6000 metros de altitude em Campo Berlim, o último acampamento antes do cume do Aconcágua a 6963 metros de altitude.
Era a 2ª noite que passava aqui, pacientemente à espera que o vento amainasse e parasse de fustigar impiedosamente a minha tenda, só se ele me desse uma trégua é que eu poderia tentar alcançar o cume da Montanha.
Decidi arriscar, sabia que ia ser difícil, que teria de enfrentar para além do vento, a altitude, que a cada passo que desse faria diminuir a quantidade de oxigénio disponível para eu poder respirar.
Saí de dentro do saco -cama, acendi o pequeno fogão de montanhismo e comecei a derreter alguma neve que tinha armazenada num saco a um canto da tenda.
Embalado pelo ronronar monocórdio do fogão, ia avaliando as minhas possibilidades, teria de ser rápido, o que na Montanha significa ir a um passo certo, evitando ao máximo as paragens.
Comecei a vestir-me, teria de ir bem abrigado, pois a temperatura devido ao vento estava bastantes graus abaixo de zero.
Por cima da 1ª capa de roupa interior, coloquei uma outra camada de forro polar, seguida de um casaco de plumas e de umas calças de gore-tex. Calcei as minhas botas e aproveitando o calor que saia da água que tinha começado a ferver na panela, aqueci um pouco as minhas mãos.
Bebi um chá e meti um punhado de frutos secos na boca, mastigando-os calmante para melhor poder aproveitar toda a sua energia.
Em seguida enchi o cantil de plástico com o resto do chá e coloquei-o no interior do meu casaco, para assim, o manter o mais quente possível.
Era 2 da manhã quando terminei todos os preparativos e ousei sair da tenda. O 1º impacto com o ar gélido, reteve-me a respiração por breves segundos, não tinha tempo a perder, era preciso movimentar-me para começar a produzir calor e evitar entrar em hipotermia.
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Dei o 1º passo e instintivamente olhei para o cume da Montanha, a avaliar o desafio que me esperava.
Por cima dela uma lua cheia magnífica, estendia uma “luz” esbranquiçada por toda a sua face.
Continuei a caminhar, passo a passo, fustigado pelo vento que impiedoso, zumbia por entre os penedos que me rodeavam.
Caminhava curvado para impedir que aquele ar frio embatesse directamente na minha cara. Passara uma hora, duas, três, e foi então que reparei que não tinha visto ninguém sair de nenhuma das poucas tendas que estavam instaladas perto da minha.
No dia anterior tinha conversado um pouco com dois canadianos, que tal como eu também são Professores de Educação Física, boa gente, simpática e rija, ficaram surpreendidos por eu estar ali sozinho. Bem, preferia ter companhia, mas não a tendo era preciso seguir em frente.
De vez em quando parava para rodar freneticamente os meus braços, evitando que as mãos esfriassem demasiado.
A progressão tornava-se cada vez mais difícil à medida que ia subindo, o vento ao invés de amainar, subia um pouco mais de intensidade.
Mais uns passos e uma pequena paragem para beber um pouco de chá, abrigado atrás de uma rocha.
Olhei o relógio, marcava as 6 horas da manhã e estava a 6370 metros de altitude. Voltei a pôr o cantil no interior do meu casaco, comi mais uns frutos secos e retomei a marcha.
O vento cada vez mais furioso, fazia-se acompanhar de pequenos flocos de neve, que mais pareciam pequenas pedras pelo barulho que faziam ao embater no meu casaco.
Tirei da mochila o meu casaco de gore-tex, velho companheiro destas andanças, mas que só utilizo quando a coisa se põe mesmo feia!
Mais uns passos de cabeça baixa, era quase impossível olhar em frente, tal a fúria com que a nevisca se abatia sobre mim.
De vez em quando levantava a cabeça para conferir a direcção em que seguia, era quase impossível orientar-me, pois a visibilidade era nula e o cume da montanha à muito que tinha desaparecido do meu campo de visão, só existindo agora na minha memória.
Sentia-me bem fisicamente, as pernas e o coração estavam fortes, o problema era aquele vento e aquela neve, o célebre “viento blanco” tão temido pelos andinistas.
Vamos, um pouco mais, quero fazer jus a um dos meus princípios, que diz que na montanha nunca se desiste ao primeiro obstáculo, vamos mais uns passos!
Ao meu redor tudo se tornava caótico, a neve como que enlouquecida, remoinhava, e o vento fazia-me cambalear.
Estava a 6417 metros de altitude e pensei para comigo: ” Fernando, chega! Já deste o teu melhor, mais do que isto não é possível, a montanha hoje não te deixa seguir mais!”
Percebi, era a altura de renunciar, sempre achei que ser capaz de perceber e assumir o momento certo para saber dizer Não, era uma das melhoras competências que um Montanhista devia possuir! E dei meia volta!
Para baixo, agora sempre para baixo, impulsionado pelo vento que agora estava pelas minhas costas, parecia que voava, e em pouco mais de uma hora, tinha regressado à minha tenda, agora coberta por uma pequena camada de neve.
Os companheiros das outras tendas atarefavam-se a desmontá-las, olharam para mim e ficaram admirados por verem que eu tinha arriscado subir.
Todos eles iam regressar ao campo base.
Saudei-os e entrei na minha tenda, bebi o resto do chá e olhando em redor, procurei arrumar as minhas ideias. Poderia ficar mais uma noite ali à espera, mas no meu íntimo sabia que o tempo não iria melhorar.
Percebi claramente que tinha de seguir a minha intuição e não permitir que o meu ego se sobrepusesse “, amachucado” por ter de renunciar a um objectivo com que havia sonhado durante tanto tempo.
A minha segurança tinha de prevalecer e por isso mesmo comecei a arrumar as minhas coisas, o saco – cama, a colchonete, o fogão, a panela, etc…
Ia dizendo a mim próprio que, saber renunciar faz parte do percurso, e que o importante é ter a consciência que demos o nosso melhor, que nos comprometemos com o nosso objectivo, mas tudo tem um limite.
Saí e rapidamente desmontei a tenda, apesar do vento e da tempestade de neve que se tinha instalado. Meti a mochila às costas e o mais rápido que as minhas forças permitiam, saí dali, pois sabia que a cada minuto que passasse tudo se tornaria mais difícil.
O caminho tinha desaparecido debaixo daquela neve, e foi só por instinto que me orientei, primeiro até “Nido de Condores” e depois dali para baixo até ” Plaza de Mulas”, o campo base do Aconcágua.
Foram 4 horas de intenso esforço e máxima concentração, mas quando por entre a tempestade vi a 20- 30 metros de mim o colorido das tendas, pude respirar de alívio, estava em segurança!
Dias mais tarde, quando no avião que me levaria de regresso a casa, sobrevoei a montanha e a vi completamente coberta de neve, percebi que tinha tomado a melhor decisão, naquela temporada mais ninguém tinha sequer tentado subi-la, e os riscos de avalanche eram enormes.
Aprendi uma grande lição, aprendi que saber dizer não, por muito que por vezes nos custe, faz parte do caminho e é essencial para termos sucesso, que no caso do montanhismo significa regressar são e salvo.
Eu estou vivo e o Aconcágua a maior montanha da América do Sul e do Hemisfério Sul, continuará lá, à espera que eu volte a tentar, respeitosamente, chegar ao seu cume!