Saber Renunciar!

Pontualmente, o alarme do relógio soou à uma da manhã, tal como eu o havia programado.

Desliguei-o, e pela milésima vez apurei os meus ouvidos, para perceber se a intensidade do vento tinha diminuído alguma coisa. O que é que eu faço? Tinha passado a noite em claro, alternando o calor do meu saco – cama com a necessidade de ter de me levantar para agarrar a estrutura da minha tenda, constantemente açoitada por furiosas rajadas de vento.

Estava a 6000 metros de altitude em Campo Berlim, o último acampamento antes do cume do Aconcágua a 6963 metros de altitude.

Era a 2ª noite que passava aqui, pacientemente à espera que o vento amainasse e parasse de fustigar impiedosamente a minha tenda, só se ele me desse uma trégua é que eu poderia tentar alcançar o cume da Montanha.

Decidi arriscar, sabia que ia ser difícil, que teria de enfrentar para além do vento, a altitude, que a cada passo que desse faria diminuir  a quantidade de oxigénio disponível para eu poder respirar.

Saí de dentro do saco -cama, acendi o pequeno fogão de montanhismo e comecei a derreter alguma neve que tinha armazenada num saco a um canto da tenda.

Embalado pelo ronronar monocórdio do fogão, ia avaliando as minhas possibilidades, teria de ser rápido, o que na Montanha significa ir a um passo certo, evitando ao máximo as paragens.

Comecei a vestir-me, teria de ir bem abrigado, pois a temperatura devido ao vento estava bastantes graus abaixo de zero.

Por cima da 1ª capa de roupa interior, coloquei uma outra camada de forro polar, seguida de um casaco de plumas e de umas calças de gore-tex. Calcei as minhas botas e aproveitando o calor que saia da água que tinha começado a ferver na panela, aqueci um pouco as minhas mãos.

Bebi um chá e meti um punhado de frutos secos na boca, mastigando-os calmante para melhor poder aproveitar toda a sua energia.

Em seguida enchi o cantil de plástico com o resto do chá e coloquei-o no interior do meu casaco, para assim, o manter o mais quente possível.

Era 2 da manhã quando terminei todos os preparativos e ousei sair da tenda. O 1º impacto com o ar gélido, reteve-me a respiração por breves segundos, não tinha tempo a perder, era preciso movimentar-me para começar a produzir calor e evitar entrar em hipotermia.

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Dei o 1º passo e instintivamente olhei para o cume da Montanha, a avaliar o desafio que me esperava.

Por cima dela uma lua cheia magnífica, estendia uma “luz” esbranquiçada por toda a sua face.

Continuei a caminhar, passo a passo, fustigado pelo vento que impiedoso, zumbia por entre os penedos que me rodeavam.

Caminhava curvado para impedir que aquele ar frio embatesse directamente na minha cara. Passara uma hora, duas, três, e foi então que reparei que não tinha visto ninguém sair de nenhuma das poucas tendas que estavam instaladas perto da minha.

No dia anterior tinha conversado um pouco com dois canadianos, que tal como eu também são Professores de Educação Física, boa gente, simpática e rija, ficaram surpreendidos por eu estar ali sozinho. Bem, preferia ter companhia, mas não a tendo era preciso seguir em frente.

De vez em quando parava para rodar freneticamente os meus braços, evitando que as mãos esfriassem demasiado.

A progressão tornava-se cada vez mais difícil à medida que ia subindo, o vento ao invés de amainar, subia um pouco mais de intensidade.

Mais uns passos e uma pequena paragem para beber um pouco de chá, abrigado atrás de uma rocha.

Olhei o relógio, marcava as 6 horas da manhã e estava a 6370 metros de altitude. Voltei a pôr o cantil no interior do meu casaco, comi mais uns frutos secos e retomei a marcha.

O vento cada vez mais furioso, fazia-se acompanhar de pequenos flocos de neve, que mais pareciam pequenas pedras pelo barulho que faziam ao embater no meu casaco.

Tirei da mochila o meu casaco de gore-tex, velho companheiro destas andanças, mas que só utilizo quando a coisa se põe mesmo feia!

Mais uns passos de cabeça baixa, era quase impossível olhar em frente, tal a fúria com que a nevisca se abatia sobre mim.

De vez em quando levantava a cabeça para conferir a direcção em que seguia, era quase impossível orientar-me, pois a visibilidade era nula e o cume da montanha à muito que tinha desaparecido do meu campo de visão, só existindo agora na minha memória.

Sentia-me bem fisicamente, as pernas e o coração estavam fortes, o problema era aquele vento e aquela neve, o célebre “viento blanco” tão temido pelos andinistas.

Vamos, um pouco mais, quero fazer jus a um dos meus princípios, que diz que na montanha nunca se desiste ao primeiro obstáculo, vamos mais uns passos!

Ao meu redor tudo se tornava caótico, a neve como que enlouquecida, remoinhava, e o vento fazia-me cambalear.

Estava a 6417 metros de altitude e pensei para comigo: ” Fernando, chega! Já deste o teu melhor, mais do que isto não é possível, a montanha hoje não te deixa seguir mais!”

Percebi, era a altura de renunciar, sempre achei que ser capaz de perceber e assumir o momento certo para saber dizer Não, era uma das melhoras competências que um Montanhista devia possuir! E dei meia volta!

Para baixo, agora sempre para baixo, impulsionado pelo vento que agora estava pelas minhas costas, parecia que voava, e em pouco mais de uma hora, tinha regressado à minha tenda, agora coberta por uma pequena camada de neve.

Os companheiros das outras tendas atarefavam-se a desmontá-las, olharam para mim e ficaram admirados por verem que eu tinha arriscado subir.

Todos eles iam regressar ao campo base.

Saudei-os e entrei na minha tenda, bebi o resto do chá e olhando em redor, procurei arrumar as minhas ideias. Poderia ficar mais uma noite ali à espera, mas no meu íntimo sabia que o tempo não iria melhorar.

Percebi claramente que tinha de seguir a minha intuição e não permitir que o meu ego se sobrepusesse “, amachucado” por ter de renunciar a um objectivo com que havia sonhado durante tanto tempo.

A minha segurança tinha de prevalecer e por isso mesmo comecei a arrumar as minhas coisas, o saco – cama, a colchonete, o fogão, a panela, etc…

Ia dizendo a mim próprio que, saber renunciar faz parte do percurso, e que o importante é ter a consciência que demos o nosso melhor, que nos comprometemos com o nosso objectivo, mas tudo tem um limite.

Saí e rapidamente desmontei a tenda, apesar do vento e da tempestade de neve que se tinha instalado. Meti a mochila às costas e o mais rápido que as minhas forças permitiam, saí dali, pois sabia que a cada minuto que passasse tudo se tornaria mais difícil.

O caminho tinha desaparecido debaixo daquela neve, e foi só por instinto que me orientei, primeiro até “Nido de Condores” e depois dali para baixo até ” Plaza de Mulas”, o campo base do Aconcágua.

Foram 4 horas de intenso esforço e máxima concentração, mas quando por entre a tempestade vi a 20- 30 metros de mim o colorido das tendas, pude respirar de alívio, estava em segurança!

Dias mais tarde, quando no avião que me levaria de regresso a casa, sobrevoei a montanha e a vi completamente coberta de neve, percebi que tinha tomado a melhor decisão, naquela temporada mais ninguém tinha sequer tentado subi-la, e os riscos de avalanche eram enormes.

Aprendi uma grande lição, aprendi que saber dizer não, por muito que por vezes nos custe, faz parte do caminho e é essencial para termos sucesso, que no caso do montanhismo significa regressar são e salvo.

Eu estou vivo e o Aconcágua a maior montanha da América do Sul e do Hemisfério Sul, continuará lá, à espera que eu volte a tentar, respeitosamente, chegar ao seu cume!

Uma Aventura no Equador

Uma das razões porque gosto tanto de viajar, é a oportunidade de conhecer novas pessoas, novos lugares, novas culturas.

Viajar é uma boa maneira de te renovares, de alargares os teus horizontes, de te conheceres melhor a ti próprio(a).

Nenhuma das viagens que fiz até hoje me defraudou as expectativas, talvez porque em todas elas procurei sempre o lado diferente, o lado pitoresco e único que ela me podia oferecer.

É verdade que tenho um fascínio especial por viajar em sítios remotos da China, do Nepal, do Kirguistão, do Peru, do Equador, da Argentina, da Rússia, de Marrocos e de tantos outros  países.

Estas viagens fazem-me descobrir novas facetas de mim próprio, porque me obrigam a sair da minha zona de conforto, transportando-me literalmente para o desconhecido.

Embora já tenha feito viagens bastante “intensas” para sítios bastante inseguros, nunca senti medo ao ponto de entrar em pânico e me sentir verdadeiramente ameaçado.

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Recordo uma ocasião em 1998 no Equador, em que ,depois de ter sido o 1º Português a subir ao Cotopaxi, o vulcão activo mais alto do mundo com 5895 metros de altitude, decidi ir até à floresta Amazónica pelo lado Equatoriano.

É sempre uma verdadeira aventura viajar pelas “estradas” remotas da América do Sul.

Neste caso concreto “apanhei” um velho autocarro na cidade de Riobamba, que após várias paragens e 16 horas de viagem, me levou até Puerto Misahualy, uma aldeia remota já na Amazónia, onde a estrada termina e começam os rios, que só de piroga e lancha é possível percorrer.

A “estrada” com o nome pomposo de Transamericana, era por esta altura um mero estradão de terra e lama, que sulcava as montanhas a meia encosta.

De um lado corria sempre um rio tumultuoso que 100 ou 200 metros mais abaixo, ameaçava com as suas águas escuras e revoltas.

Do outro lado estávamos “protegidos” por uma escarpa a perder de vista, de onde de vez em quando caía um pedregulho do tamanho de um carro e que bloqueava a estrada!

Valia-nos uma velha escavadora que viajava à nossa frente, e que diligentemente ia afastando as pedras do caminho, permitindo a nossa passagem!

Em dada ocasião e após um solavanco mais violento, uma senhora que viajava ao meu lado ficou sem conseguir respirar, atrapalhado e sem saber o que fazer, chamei pelo condutor, que com um ar enfadado, parou o autocarro, levantou-se, e dirigindo-se à senhora pegou-lhe pelas axilas e deu-lhe um esticão, levantando-a no ar.

Foi remédio santo, como que regressada do mundo dos mortos, a senhora recobrou o fôlego, permitindo ao condutor regressar ao seu posto, com o ar entendido de quem pela centésima vez, pelos mesmos motivos e com os mesmos métodos, tinha salvo a vida de alguém!

A dada altura, entra no autocarro um passageiro transportando uma caixa de madeira, de onde poucos minutos depois retira uma enorme cobra piton albina, mais conhecida nestas paragens  por “matacaballos”, por ter a capacidade de “abraçando-se” ao ventre de um cavalo, o apertar até à morte por estrangulamento!

Este homem vendia uma pomada para os ossos e articulações, a autêntica banha da cobra, então para que não restassem dúvidas, fazia questão de trazer um exemplar de onde esta “mezinha” milagrosa era retirada!

A cobra que seguia pendurada aos seus ombros, passeava a sua bonita cabeça por cima dos passageiros sentados.

Por entre estas e outras peripécias lá fomos continuando “estrada” fora, solavanco aqui, paragem acolá, até que do velho e ruidoso motor, começou a sair um fumo branco que não augurava nada de bom! Pela enésima vez parámos, e curioso pela demora do condutor, decidi sair para ver o que se passava, e em boa hora o fiz, pois o pobre homem cansado e frustrado por tanta contrariedade, tentava sem sucesso, “emborcar” uns quantos litros de óleo no fatigado motor!

Dei-lhe uma “mãozinha”, que ele agradeceu genuinamente dando-me uma palmada com a sua mão  suja de óleo nas minhas costas!

Não me chateei, pelo contrário, satisfeito por ter sido útil, sorri-lhe e devolvi-lhe na mesma moeda, como só velhos companheiros de jornada sabem fazer! Seguimos viagem!

Entretanto a noite caiu, e com ela o espectáculo maravilhoso de percorrer aqueles últimos kilómetros por entre uma floresta densa, repleta de vida e de mistério.

Talvez por termos perturbado o seu descanso, as aves faziam um barulho infernal, na berma da estrada víamos pares de olhos luminosos que “à cautela” nos espiavam!

Que animais seriam? Não sei responder, mas eram certamente muitos e variados!

Devagar lá fomos continuando, e quando voltou a ser necessário efectuar outra paragem para reabastecimento de óleo no motor, o condutor com um gesto da cabeça, convocou-me para o ajudar.

Orgulhoso por tão honroso convite, levantei-me tão ligeiro quanto o cansaço me permitia, e ajudei-o a “reanimar” o pobre motor.

Finalmente chegámos a Puerto Misahualy!

Apesar do tardio da hora de chegada, os poucos habitantes ao ouvirem o ronco ofegante do autocarro, acenderam os seus candeeiros a petróleo e vieram receber-nos na praça central.

Nesta praça  existia uma  árvore enorme,  de onde para meu espanto, desceram dezenas de pequenos macacos que matreiros e espertos, tentavam roubar alguma coisa para comer!

Reencontraram-se familiares, que pela forma efusiva como se abraçavam, há muito que não se viam.

Descarregaram-se as bagagens, caixas, cestas, caixotes, que tanto fizeram sofrer o velho mas tenaz autocarro, e por fim, quando todos se foram embora para o interior das suas humildes casas, fiquei sozinho com a minha mochila e com o condutor do autocarro.

Ofereceu-me uma cerveja que  retirou de uma caixa com gelo,  como que a comemorar o “êxito” desta épica viagem.

Mais tarde,  cansado  desta aventura, afastei-me para longe, indo estender o meu colchão de montanhismo junto a uma árvore, deitei a cabeça na mochila e olhando aquele céu imenso povoado de incontáveis estrelas, esperei pelo amanhecer, e pela oportunidade de seguir a minha viagem e viver novas aventuras, desta vez de piroga rio abaixo, cada vez mais fundo nessa maravilhosa e indescritível Amazónia!

Nesta viagem da qual contei um pequeno trecho, aprendi grandes lições,  entre elas a  de sabermos valorizar as coisas simples, de termos a capacidade para das contrariedades conseguirmos retirar  coisas positivas, pois só assim independentemente das circunstâncias que nos rodeiam, podemos continuar a desfrutar da Vida em todo o seu Esplendor!