AO MAU TEMPO, CARA ALEGRE

A luz do entardecer esbatia-se rapidamente, e com ela vieram os primeiros flocos de neve, primeiro timidamente, depois com regularidade.

Foi já com o céu cor de chumbo, que a queda de neve se transformou em tempestade.

Impulsionadas por um vento que a cada instante aumentava de intensidade, os flocos de neve começaram a vestir a montanha de branco, apagando rapidamente as minhas pegadas.

O avanço revelava-se cada vez mais difícil, obrigando-me a um esforço suplementar.

Parei e olhei em meu redor, na esperança de encontrar alguma referência visual, consultei o mapa, bem protegido no bolso do meu casaco, nada, impossível, tudo à minha volta era branco e cinzento, ocultando qualquer vestígio que pudesse ajudar a orientar-me.

Sabia para onde queria ir, tinha planeado passar aquela noite num “col” a 3500 metros de altitude, no entanto, era preciso reavaliar a situação.

O meu altímetro indicava 3237 metros de altitude, e eu devia estar a cerca de 2 horas do meu objectivo, mas a falta de visibilidade complicava tudo!

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Decidi parar, para quê continuar a gastar energia sem saber se estava no rumo certo, correndo o risco de me afastar cada vez mais e de forma perigosa do objectivo que queria alcançar? Não fazia sentido.

Improvisei um bivaque, como estava a viajar em autonomia, tinha comigo o saco cama, o saco de bivaque, o fogão e todos os outros utensílios necessários.

Com dificuldade encontrei uma rocha, que juntamente com a minha mochila, utilizei para me proteger, acendi o meu frontal, meti-me dentro do saco cama e do saco de bivaque, e sentado de costas contra a rocha, comi e bebi o que me foi possível.

Em meu redor, a neve acumulava-se, conferindo aquele lugar uma áurea de magia.

É sempre possível encontrar beleza mesmo nas situações mais caóticas!

Decidi não me preocupar, controlava o que podia controlar, o resto, o que me escapava, não deveria apoquentar-me.

Devia manter-me atento, e esperar pacientemente, pois sei que a seguir a uma tempestade  vem sempre a bonança!

Acreditava que amanhã iria assistir a um amanhecer maravilhoso, e com ele à perspectiva de mais um dia magnifico, em que continuaria tranquilamente a minha jornada.

Por mais que queiramos avançar obstinadamente, por vezes é preciso saber parar, reavaliar as circunstâncias e esperar pelo despertar de um novo dia, que por mais longa que seja a noite, acabará sempre por surgir!

E assim foi, a meio da noite a tempestade amainou, e pela aurora, como que obedecendo a uma vontade superior, a queda de neve parou.

O céu desanuviou dando lugar a um azul magnifico, que contrastando com o branco das montanhas, conferia à paisagem uma beleza extraordinária!

Arrumei as minhas coisas e segui caminho, estava satisfeito comigo próprio por ter tomado a decisão acertada ,e sem a qual não teria agora o privilégio de assistir a tão deslumbrante espectáculo!

Sorri e disse para mim mesmo, que na montanha, tal como na vida, ao mau tempo cara alegre!

A DESCOBERTA DOS PIRINÉUS

Recordo com muito carinho a primeira vez que fui aos Pirinéus.

Foi no ano de 1992, na altura eu era Professor da disciplina de Educação Fisica na Escola Infante D. Pedro em Alverca, e tinha lá fundado um núcleo  de montanhismo em 1989.

Este clube todos os anos fazia actividades de vários dias nas Serras de Sintra , do Gerês e da Estrela, e comecei a pensar que o passo seguinte seria proporcionar aqueles jovens de 14 e 15 anos de idade, uma experiência fora do país.

Decidi levá-los ao Parque Natural dos Pirinéus Franceses!

Estávamos em Dezembro, e após uma actividade de 3 dias na Serra de Sintra, apresentei-lhes a minha ideia, a reacção deles não podia ser mais esclarecedora, todos queriam ir!

Em seguida, falei com a minha colega que era a presidente do Conselho Directivo da escola, que achou a ideia excelente, as coisas começavam a compor-se, isto apesar das criticas de alguns colegas, que se apressaram a antecipar imensos problemas e terríveis catástrofes!

Na minha cabeça a ideia era clara, conseguia visualizar claramente os contornos deste projecto.

Escolhi a pequena aldeia de Lourdios-Ichére  para ai assentar arraiais durante 15 dias, numa pequena casa disponibilizada pela “Mairie” local.

Iniciei o planeamento com os membros do grupo, que não cabiam em si de entusiasmo.

Não havia tempo a perder,  como existiam muito interessados e só 15 poderiam ir, decidimos que seria efectuado um sorteio entre os rapazes e outro entre as raparigas , para assim se respeitar o principio da proporcionalidade.

Depois, todos se dispuseram a preparar da melhor forma para tão ambicioso projecto, falei com as minhas colegas  das disciplinas de Geografia e Biologia, que estudaram com eles as caracteristicas da zona para onde iamos.

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Uma colega de Francês voluntariou-se para leccionar mais uma aula semanal, com a finalidade de os tornar autónomos na língua francesa, e eu, para além das aulas de Educação Fisica, agendava mais dois treinos semanais que todos cumpriam com inegável satisfação!

Tínhamos que nos preparar bem para aproveitar da melhor forma esta oportunidade! Quando existe um propósito claro, tudo se torna mais fácil!

Entretanto tinha sido feita uma reunião com os Encarregados de Educação, que manifestaram grande entusiasmo e confiança no projecto e em mim próprio.

Tudo corria como planeado, em Março mantivemos a nossa actividade habitual em neve e rocha na Serra da Estrela, e em Junho, fizemos a tradicional travessia do Gerês em autonomia, durante 7 dias.

Chegou finalmente o dia mais difícil, sortear quem iria à viagem! Na presença de todos foram retirados os 15 nomes finais, e por entre lágrimas e sorrisos, todos se felicitaram, os que iam e os que infelizmente ficavam!

Que belo espirito de equipa, orgulhava-me deles, de todos eles, tinha-lhes ensinado o valor da partilha, da entreajuda, da solidariedade, durante as nossas actividades, sempre que alguém por exemplo abria um pacote de bolachas, partilhava-o naturalmente por todos, e agora o resultado estava ali! Fiquei comovido.

Chegou o dia da partida, e lá fomos nós de comboio, eu, mais 6 raparigas e 9 rapazes, numa viagem que durou 23 horas!

Por lá ficamos 15 dias, vivendo de forma comunitária, apoiando-nos uns aos outros, e fazendo actividades até mais não poder!

Escalada, Rapel, Canionismo, Caminhada, Espeleologia, a subida ao Pico de Anie com 2501 metros de altitude, a minha primeira corrida de montanha, e sobretudo muito convivio, muitas conversas à fogueira, muitas peripécias, muitos sonhos partilhados, muitos abraços fraternos.

No meio da lama, da chuva, do suor e do cansaço, fomos uma verdadeira equipa, um grupo de amigos, uma familia!

As dificuldades uniram-nos, e regressámos mais fortes!

Decorreram 24 anos, já 24 anos, muitas voltas deu a vida, deixei de ver alguns deles, sou amigo de outros, padrinho de alguns dos seus filhos, mas dentro do meu coração, esta façanha perdurará para sempre.

Recordo os rostos de todos eles, as suas caras juvenis, risonhas, cheias de esperança, e eu a esta distância, sinto uma pontinha de orgulho, porque sei que a experiência que os ajudei a viver marcou a vida deles.

Mostrei-lhes que é bom sonhar, que o mundo é vasto e belo, na sua grandeza e abundância, que quando as boas vontades e a amizade se unem, tudo se torna possível, e que todos os sonhos, mesmo os mais inverossímeis, quando regados com suor e alimentados com esperança, podem originar belas experiências de vida!