Quero partilhar contigo uma página do meu diário, referente a uma expedição que realizei há alguns anos, e da qual guardo gratas e carinhosas recordações. Aqui vai…
Diário de um Alpinista
Dia 17 da expedição ao Muztagh-Ata (7546 m) – China
São 2 horas da manhã (10 horas da manhã em Portugal).
Ainda dentro do meu saco cama, atrevo-me a meter a cabeça fora da tenda.
O meu relógio marca 20º negativos de temperatura… BRRR!
É preciso levantar, ganhar coragem para abandonar o conforto do meu saco cama, coberto por uma camada de gelo fino que se parte a cada movimento que faço.
Acendo o fogão e princípio a tarefa de derreter neve, é preciso preparar o máximo de líquidos, ingerir a maior quantidade possível de sopa e de chá.
Esta 2ª noite passada a 6950 metros de altitude, tem efeitos devastadores sobre um organismo menos bem hidratado.
Acordo o meu colega Denis, que é francês, passou muito mal a noite, sofre muito com a altitude e só a sua enorme perseverança o mantém aqui.
Dou-lhe de beber e de comer, alerto-o para a necessidade de “escutar” o seu corpo, pois só assim evitará algum excesso que lhe possa ser fatal.
Duas horas mais tarde estamos fora da tenda, debaixo dos nossos crampons, o gelo e a neve rangem a cada passo.
Á nossa frente, talvez a 8 horas de distância, o cume do Muztagh-Ata brilha, como que a desafiar-nos para que o alcancemos.
Iniciamos a ascensão, passo a passo, respiração a respiração, toda a atenção é pouca, a escuridão da noite apesar de rasgada pela luz dos nossos frontais, esconde
enormes perigos que é preciso saber evitar.
No céu vêem-se já as primeiras claridades da aurora, numa panóplia de cores que o melhor dos pintores por certo não desdenharia. Magnifico!
Continuo no meu esforço, agora sozinho, o Denis não aguentava mais, estava exausto.
Sei que não posso parar, se o fizer, o frio intenso acabará por me vencer.
Cada músculo do meu corpo, faz-me lembrar que estou vivo, o silêncio, este majestoso silêncio, enche-me de paz, apesar das dificuldades….
Deixo de subir, cheguei ao cume!
Ao meu redor que paisagem, o deserto de Taklamakan, as Montanhas do Paquistão, do Kazaquistão, do Afeganistão, do Kirguistão, eu sei lá….
Sento-me. Que beleza, que paz, que silêncio, que grandiosidade.
Como poderei eu alguma vez explicar o que vejo e sinto? Impossível!
Não há palmas, não há público, só eu e as montanhas ao meu redor.
O corpo pede-me para ficar, é normal, a 7546 metros de altitude, o oxigénio está reduzido a apenas 30%,e tem esse efeito sobre nós.
Tiro fotografias e desço, tenho de descer, o objectivo é chegar ao cume e regressar, são e salvo!
Sinto os dedos frios e as forças ao fim de dez horas de intensa actividade já não são as mesmas.
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Três horas mais tarde avisto ao longe o amarelo da minha tenda, e os braços do Denis que se agitam no ar a indicar-me o caminho, mais uns passos e estarei a salvo no conforto do saco cama e com uma caneca de chá nas mãos, para me aquecer.
Finalmente cheguei, o meu companheiro felicitou-me e oferece-me o chá que eu tanto anseie, agradeço-lhe e preparo-me para passar outra noite a 6950 metros de altitude.
Sinto-me tranquilo e cansado, muito cansado! Subir e descer custaram-me 14 horas de esforço e ligeiras congelações nos dedos. Ossos do ofício.
Amanhã há mais, é preciso descer para o campo base, a 4400 metros de altitude, só aí estarei totalmente seguro.
Por hoje terminou a jornada, é bom sentir o calor do saco cama que pouco a pouco vai invadindo o meu corpo.
Ao som da música do meu mp3, sinto os olhos cada vez mais pesados e o último pensamento que tenho, é o de que vale a pena sonhar……. Sonhar …….
Espero que tenhas gostado, é um pedaço das minhas memórias da montanha, que quis partilhar contigo.
Espero que ele te possa ter inspirado, a lutares cada vez com mais força e determinação, pelos teus objectivos!
Um grande abraço, e até ao dia em que possamos subir juntos, uma bela Montanha!